sexta-feira, 25 de junho de 2010


Leito de chuva sobre cama de sol


Dormirei serena nesse leito de chuva até que a manhã, numa cama de sol, me saúde com cantos de rouxinol. Não importa a cor da melodia, nem o deserto que virá depois, não importa a luz, mesmo que ela me antecipe se será morno ou frio, aquele dia.
Não me interessam as previsões temporais, (talvez quebre o pluviômetro) nem as notícias de que a quietude apagara as páginas de ontem. Não importam as horas mortas. O que me aflige ou que me rouba as ilusões é o desenho da fala fria de tua voz, dizendo ser natural a desilusão.
De que adiantam meteoritos, estrelas cadentes se, cá dentro, ouço trovejar meu coração?Tenho medo da dor, do estrago, desse afago, de um amor mudo. Tenho medo do tudo que vive nessa palavra (amor). Queria apagar meu mundo, ou parte dele. Descanalizar o sangue quente das minhas vias, embalar-me numa rede de canção. Queria tomar o vento, senti-lo na imensidão da palavra e tornar-me marinheira de muitas viagens. Queria aportar num porto (talvez seguro, talvez!).
Se possível fosse, sairia de mim, numa viagem transcendental... e a outra parte que restasse desse corpo, jaz inóspito, seria legado da terra, do chão que me viu nascer. Contudo os desejos são idéias, não têm forma, nem retratos, nem imagens (concretas), nem virtudes e vícios. Os desejos são vazios. Dormirei.


Maria Maria

Foto: Eme Gomes

quinta-feira, 17 de junho de 2010


Orvalho no negro da noite

Como ser sereia
nesse chão
que incendeia?

Não fosse a gota
de orvalho que escorre
da chuva
;
;
;

estaria guache
feito anjo drummondiano,

mas lavaria minha alma
com a água que chora

de mim.

Maria Maria

sábado, 12 de junho de 2010


POEMA DE DUPLA FACE

Quero caminhar sobre ti
como quem caminha nas nuvens:

e me dizer todo dia
amor (a).

Quero me fazer algodão
irrigado de poesia

e ser-me inteira tua,
nesta noite de lua.

Maria Maria

terça-feira, 8 de junho de 2010

ONDE NÃO PASSA O RIO

Francisco Carvalho

O rio (dizem) passa por debaixo da ponte
mas, a bem da verdade, o rio
nem sempre passa debaixo da ponte.
Às vezes adormece à sombra das pessoas
à procura de migalhas de amor em cima da ponte.

O rio e a ponte, como todas as coisas
que se encontram em realidades opostas,
são apenas verdades relativas
que roçam pelos nossos sentidos de mamiferos
esmagados pela densidade do eterno.

Até quando me darei conta de que é preciso
rejeitar a falsa premissa de que o rio
passa por debaixo da ponte?

Onde quer que esteja, estarei defronte
dos limites ilimitados do horizonte
onde não existe rio nem ponte.

Tão bonito que veio parar no Espartilho.

quinta-feira, 3 de junho de 2010


RUA DO BREJO

Para Uda, minha irmã

Quando te vejo,
vislumbro o horizonte:
sinto o cheiro do mato
a imponência do monte.

Serras nuas de verde:
cacto, galho, cardeiro,
reservatório de água
na colina do cruzeiro.

Cruzeiro da meninice,
da flor do mandacaru,
do leito do rio seco,
do menino que corre nu.

Crianças livres na rua,
abelhas, picadas, capins,
zigue-zague indo à lua
brincadeiras nos jardins.

Campos de flores roubadas,
de gatos e bem-te-vis,
de noites e madrugadas,
dos beijos dos Serafins.

Saudade lá do meu brejo,
da pura infância que tive,
da caatinga, do cerrado
do lugar onde nasci.

Maria Maria

Escrito em 1986